Se acontecer de eu ser eleita, imagina o nó na cabeça da
bancada evangélica? Como assim uma pastora ‘trava’?” Tem gente que faz o sinal
da cruz só de pensar na possibilidade, e Alexya Salvador, 37, sabe disso. Mas,
para ela, é uma questão de mudar o sistema por dentro. “Quero estar ao lado do
Bolsonaro e dizer: o sr. está equivocado.”
O presidenciável do PSL, para ela, simboliza o pior dos
mundos, porta-voz de um conservadorismo que não tolera a diversidade
—precisamente o que ela representa, dos pés (tamanho 44) à cabeça (com a
cabeleira cacheada recém-ajeitada no salão de beleza).
Alexya é pastora transgênero na ICM (Igreja da Comunidade
Metropolitana), que destoa de outras denominações evangélicas por agregar o
público LGBTQ. Templos do tipo são chamados de igrejas inclusivas, conceito que
Alexya acha curioso. “É tão redundante, né?” Para ela, todas as igrejas
deveriam incluir, e não excluir irmãos.
Ela se filiou ao PSOL em 2017, após ouvir o deputado e agora
colega de partido Jean Wylls dizer que era o único parlamentar assumidamente
homossexual no Brasil. Agora Alexya quer concorrer à Câmara dos Deputados, pois
Deus a livre de ter um Congresso à mercê de figuras como Cabo Daciolo, o
congressista que começou a carreira política no PSOL e hoje, no Avante, faz
“profecias” para Wyllys —“irmão Jean, você vai se casar e ter filhos e levar a
palavra de Deus por todo o país”, disse em 2017 na tribuna.
Vaticínio que Alexya dispensaria. Ela, afinal, já é muito
bem casada com Roberto, a quem conheceu na escada rolante do metrô da Sé. É
também mãe de dois filhos adotados: Gabriel, 13, que tem necessidades especiais
(“ele vive no seu mundinho particular”), e Ana Maria, 11, transgênero, como a
mãe —que é vice-presidente da Abrafh (Associação Brasileira de Famílias
Homotransafetivas).
Religiosa Alexya sempre foi. “Cresci na Igreja Católica
porque lá era o único lugar que eu não apanhava”, conta à Folha na sede da ICM,
na Santa Cecília (região central de São Paulo). Os sopapos que levava fora
dali, de colegas que não aceitavam “o viadinho da turma”, deixavam hematomas.
Mas a violência de escutar padres dizendo que gays não eram “obra de Deus”
gerava marcas tão ou mais profundas nela.
Na época ela não sabia, mas Alexya nunca foi gay. É uma
mulher trans. “Nasci com pênis, então tinha que me comportar como meus pais
esperavam. Mas eu queria rodar bambolê, e não jogar futebol.”
Um Natal em particular a marcou. Tinha uns 9, 10 anos. A
árvore de Natal da família, em Mairiporã (SP), era um pinheiro encravado numa
lata de tinta, com algodão simulando neve e bolas de vidro daquelas que
quebravam fácil.
“Lembro que meu pai trabalhou tanto que conseguiu presentes.
Pra mim, um carrinho de controle remoto. Pra minha irmã, uma Bebê Boneca.
Esperei todo mundo dormir, peguei a boneca e fui no banheiro brincar com ela.”
Quando ainda atendia por Alexander, chegou a fazer
seminário. Foi por esses tempos que, voltando de evento na PUC, viu “muitas
travestis numa rua”. Tinha 22 anos. “Os outros seminaristas tiraram sarro, mas
aquela imagem não saía de mim, me invadiu como se fosse uma luz.”
Terminou o seminário e decidiu contar aos pais que era
transgênero. “Minha mãe teve um acesso de riso, meu pai disse: 'Olha, se você
for viado até aceito, mas se eu te ver vestido de mulher vou te matar'. Pensei,
ok, se ele me aceita como gay já é um começo.”
Aos 28, se assumiu como mulher trans. “A partir de hoje não
sou Alexander, não uso mais cueca, vou usar o cabelo até a cintura. Meu pai até
engasgou na lasanha que estava chupando.” Hoje ele já a aceita como filha,
processo catalisado por um personagem transgênero que o comoveu, o Ivan (Carol
Duarte) da novela global “A Força do Querer”.
Muitos não a aceitam, é verdade. Por isso, para cada
comentário de ódio que recebe nas redes sociais, Alexya já sabe o que fazer.
“Amo a função ‘block’ [bloquear o usuário que incomoda], até ovulo quando
bloqueio”, ela brinca.
Os ataques partem inclusive de igrejas inclusivas, que acham
a ICM liberal demais. “A gente não tem doutrina, e isso irrita os outros. Aqui
dizemos que pode ir bater cabelo na Blue Space e beber seu chopinho no Caneca
de Prata se quiser”, diz sobre a balada gay e o bar voltado a esse clube no
paulistano Largo do Arouche, respectivamente.
Sua militância maior é na teologia, conta. Procura
desconstruir a ideia de que a Bíblia crava a homossexualidade como pecado. Sim,
de fato, está lá no livro Levítico, do Antigo Testamento: “Não te deitarás com
um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação”.
“Mas Levítico também diz que Deus abomina quem veste roupa
com dois fios diferentes e come camarão [que seria impuro]. E o apóstolo Paulo
rebaixou a mulher a nada, diz que ela não pode comandar assembleia, cortar
cabelo, é submissa ao marido”, afirma.
Nesses casos, continua Alexya, as pessoas vêm dizer que não
dá para levar tudo ao pé da letra, pois eram outros tempos. “Por que isso de
‘naquele tempo era assim’ não serve para a comunidade LGBTQ?”
Para a pastora, Jesus foi “o primeiro transgênero”, pois
“quando encarna no útero de Maria, transgride o gênero divino e assume o
humano”.
Alexya Salvador quer agora transpassar preconceitos. E é bom
que o campo progressista faça a lição de casa, diz. Na Parada Gay, por exemplo: “As
glamorosas midiáticas que não sabem o que é lavar louça, desconhecem o preço do
arroz, são essas que estão com o microfone. Sou da periferia, gata. A trava
morta, a bichinha que apanhou, essas não são agregadas ao debate”.